
Enderson expôs que seu ciclo no Sport deveria ter acabado antes. Foto: Leo Piva
O treinador Enderson Moreira fez muito mal ao Sport. Como poucos fizeram até hoje. E o Sport também fez muito mal a Enderson. Uma relação que atingiu um nível de desgaste sem precedentes, causando a corrosão da temporada do clube – em um dos maiores, talvez o maior, fracasso esportivo da sua história – e expondo o próprio treinador a um constrangimento público e definhamento profissional raro de se ver no mercado, agravado por declarações que nunca vimos técnico algum fazer ainda ocupando o cargo.
A última, após a derrota na 37ª rodada da Série B, foi desoladora. “A gente tem que entender ciclos. E o ciclo de Enderson poderia ter sido encerrado um pouco antes. Talvez no momento em que a gente não estava conseguindo o resultado”. A frase repercutiu nacionalmente. Expôs o colapso da gestão de futebol do clube de um modo constrangedor. O próprio treinador – despido de qualquer pudor diante da sequência de fracassos e da sua impotência para tentar mudanças – veio a público dizer que deveria ter deixado o cargo antes.
Como a situação chegou até este ponto? Por que ele não pediu demissão antes?
Houve um único momento ao longo do incontornável declínio do Sport na Série B que Enderson Moreira entregou o cargo. Após o empate em 3×3 diante do Criciúma, na Ilha do Retiro. Mais jogo de cena do que desejo de sair. Aquela partida foi precedida pelo vazamento de informações e uma turbulência em relação ao fato do técnico não ter relacionado Diego Souza. O episódio incomodou Enderson, que adotou uma postura agressiva em torno disso na coletiva. Respaldado internamente e, depois, publicamente pela gestão de futebol – que sequer considerou a possibilidade da saída do técnico. Estavam juntos. Mais do que deveria. E, fundamentalmente, mais do que cabe em uma relação essencialmente profissional.
No fio condutor desta relação corrosiva estão três nomes que precisam ficar marcados: O presidente do clube, Yuri Romão; o dirigente Augusto Carreras; e o executivo Jorge Andrade. O trio forma a cúpula de futebol do Sport. Na verdade, um quarteto. Já que o próprio Enderson tornou-se parte dela. Uma bolha isolada de tudo e de todos. Sem olhos e sem ouvidos. Uma bolha de perfis vaidosos que se autoalimentavam numa relação de dependência. Muito mais do que confiança, amizade ou lealdade. A palavras-chaves para entender esse organismo são vaidade e dependência.
Os sinais de corrosão e o elo quebrado
O trabalho de Enderson no Sport começou a apresentar os primeiros sinais de corrosão desde o fim de junho, nas seguidas atuações com baixíssima intensidade fora de casa (empates contra Ponte Preta e Chapecoense e derrota para o CRB). Mas foi depois de uma vitória sobre o Ceará que a primeira crise pública se estabeleceu. Vaiado ao fazer uma substituição, o treinador se voltou contra os torcedores com agressividade, muito acima do tom. Na coletiva disse ter se sentido humilhado como profissional.
Algum elo foi quebrado naquele momento. O desgaste na relação não teria mais volta. A partir dos jogos seguintes, Enderson parecia mandar recados. Respostas. Quase provocações. Passou a escalar desordenadamente garotos da base que ele mesmo negligenciou no Estadual. Era um movimento claro e intencional de exposição das fragilidades do elenco.
A repetição do Bahia de 2022
O fato é que aquela vitória sobre o Ceará marca a última boa atuação do Sport em 2023. Dali por diante, o efeito dominó começaria. A queda. Em um ritmo lento e gradual, corroendo por dentro. Minando relações. Queimando alternativas. Criando factóides. Distorcendo números. Repetindo exatamente todos os seus passos no seu trabalho anterior no Bahia, quando foi demitido na 33ª rodada com o time 5 pontos acima do 5º colocado.
A diferença é que, no Sport, Enderson sequer foi cobrado internamente. Pelo contrário. Seu discurso oco, derrotista e agressivo foi endossado pela cúpula de futebol do clube. O “nós contra eles” foi criado. Os de “dentro” contra os de “fora”.
Não por acaso, os torcedores do Bahia dizem assistir hoje o que teria acontecido ao clube na reta final da Série B de 2022 se Enderson não tivesse sido demitido.
Afinal, em que momento Enderson deveria ter sido demitido?
Os sinais de desgaste iniciados em junho foram ficando cada vez mais evidentes. Incontornáveis. A queda de rendimento e a condução cada vez menos razoável dos problemas indicavam a necessidade de uma intervenção. Mas, do outro lado da moeda, a atual direção rubro-negra têm um histórico de prorrogar ao máximo decisões que causem qualquer tipo de cisão interna. O conceito de lealdade se mistura ao de covardia. Medo de agir. Medo de intervir. Medo de fazer qualquer mudança em um ambiente que parece controlado.
Foi assim com Gilmar Dal Pozzo em 2022. Sua demissão só veio quando o time deixou o G4. Foi assim – e aqui de forma muito mais grave – com o lateral Igor Carius nesta temporada. O jogador foi condenado pelo STJD por manipulação de resultados. Uma conduta ética e moralmente inaceitável no futebol. O Sport foi o único clube do país a acolher um atleta condenado e suspenso do futebol por 360 dias. A ética, a honra e o moral do clube foram deixados de lado pelo melindre de causar qualquer contrariedade interna.
A declaração do vice-presidente jurídico do clube, Rodrigo Guedes, ao jornalista Daniel Leal, da Itatiaia, expõe claramente como funcionam as relações dentro do clube: “A gente botar uma pessoa para fora, imagina isso dentro do elenco? Imagina você ter um amigo, um colega de trabalho que se dá bem com todo mundo. Será que vale a pena o Sport economizar R$ 50 mil, R$ 100 mil até o final do ano ou ter o acesso? Por isso, esse zelo. Temos muitas coisas mais importantes do que colocar uma pessoa para fora e criar um conflito interno no grupo”.
Se Cariús, condenado por manipulação de resultados, é intocável dentro do clube, o que dizer de Enderson Moreira?
Por isso que não considero que as relações que movem Yuri Romão e Augusto Carreras são de “lealdade”, como o presidente chegou a dizer publicamente. A palavra é dependência. Os dirigentes tornaram-se reféns do técnico e do elenco. Um misto de acomodação e covardia. Não tiveram a coragem mínima de fazer nenhuma mudança. Em nenhum momento.
O tapa na cara da realidade
Existe um jogo em que a permanência de Enderson se torna absurda. Inacreditável, até. O empate em 3 x 3 diante da fraca Ponte Preta em plena Ilha do Retiro. A pior atuação do ano. Completamente desorganizado em campo, sem criar uma única jogada e com a marcação vulnerável, o Sport leva 3 x 0 nos primeiros 35 minutos. Foram os únicos gols marcados pela Ponte em um recorte de sete partidas. No 2º tempo, o treinador em um ato de desespero colocou em campo jogadores que ele mesmo havia isolado, como Fabrício Daniel a Alan Ruiz. A reação não poderia jamais ter sido utilizada para apagar o que aconteceu no 1º tempo e manter em curso um trabalho que não apresentava nenhum sinal de evolução ou correção de rumo mesmo com semanas livres de treinamento.
E aquela noite ainda reservava um último capítulo. Na coletiva, tentando encontrar alguma forma de justificar a atuação desastrosa do seu time, Enderson deu uma declaração que minimizou a importância da torcida na Ilha do Retiro. “A Ponte é um time tradicional. Você acha que a Ponte sente jogar contra o Sport aqui? Ele joga contra o Corinthians, contra o Palmeiras, contra o São Paulo, contra o Santos…Você acha que eles vêm aqui ‘ah, estamos impactados’. Não tá, cara!”, disse o treinador. O detalhe é que o time da Ponte de 2023 sequer disputou a primeira divisão do Campeonato Paulista.
Atuação desastrosa. Queda contínua de rendimento em três meses e sem nenhum sinal de evolução depois de semanas livres de trabalho. Risco iminente de sair do G4 na rodada seguinte. E, por fim, declaração minimizando a própria torcida. Não eram mais sinais claros. O que aconteceu naquela segunda-feira foi um tapa na cara da realidade.
O all in, o tudo ou nada, o “nós contra eles”
E a omissão daquela noite custou caro. Como estava absolutamente claro, o Sport de Enderson não tinha mais o que extrair. Não havia mais alternativas para tentar ajustar. Não havia mais caminhos. O último limite tolerável havia sido cruzado.
Mas o presidente Yuri Romão declarou ter absoluta confiança em Enderson Moreira e garantiu que ele seguiria como técnico do Sport não apenas até o fim de 2023, mas também no ano que vem – independentemente do acesso.
Outro tapa na cara. Mas desta vez não foi da realidade e sim, da cúpula que gere o futebol no clube. O recado foi direto: “Somos nós contra todos”. A bolha contra quem é de fora. E, infelizmente, naquele momento, o Sport estava fora da bolha. Os interesses básicos de sobrevivência e futuro esportivo e financeiro do clube não eram mais prioridade para quem estava encolhido na bolha cada vez menor, mais arrogante e sufocante. Até as pessoas que circulam no entorno da cúpula tentaram intervir, aconselhar. Em vão.
All in. Tudo ou nada. Nós contra eles. Entre reconhecer o erro e tentar uma mudança capaz de conduzir o Sport para o acesso, Yuri Romão, Augusto Carreras e Jorge Andrade preferiram dobrar a aposta. Morreriam abraçados se preciso fosse.
O reconhecimento público do fracasso
A situação foi tão absurda, tão fora da lógica e do racional, que gerou os últimos capítulos inacreditáveis dessa relação, neste momento, quase doentia. O treinador Enderson Moreira passou a adotar – não se se consciente ou inconscientemente – um discurso melancólico de reconhecimento do próprio fracasso, constrangendo a si mesmo e a direção do clube. Faltando três jogos para o fim do campeonato e às vésperas de uma decisão, o treinador escreveu em seu Instagram: “Infelizmente, nossa realidade hoje é de incerteza”.
Com mais uma frustração, as declarações amargas e a expressão melancólica e cabisbaixa continuaram: “A gente buscou de todas as formas, estamos tentando, buscando… Houve uma desencaixe da nossa equipe, tentamos achar soluções, mas não conseguimos”, admitiu, além de sentenciar que o acesso a partir dali estaria dependendo do imponderável.
O treinador reconheceu, duas vezes, que não tinha mais confiança no próprio trabalho para encontrar as soluções que o time precisava urgentemente. E, ainda assim, foi mantido no cargo. Espremido até a última gota. Até a última chance. O lastro político do próprio presidente do clube foi espremido junto. A viabilidade de Carreras como gestor de futebol também foi espremida junto.
No último ato, a covardia em seu estado puro
Perderam todos. Perderam juntos, como se propuseram a perder. A bolha que se autoalimentava também se autodestriu. E foi a exposição do fracasso, a repercussão nacional da declaração final de Enderson que causaram a sua demissão faltando um jogo para o fim da Série B. A covardia se estabelece em seu estado puro. Dos dois lados. Faltando um único jogo, a saída do treinador é conveniente para todos, evitando um último ato de exposição. Um último constrangimento. A temporada do Sport termina nos escombros desta relação de dependência, na falta de discernimento e profissionalismo da gestão de futebol do clube e no reconhecimento mútuo da impotência em fazer mudanças necessárias. Quando necessárias.
E, sinceramente, não sei se 2023 deixará algum aprendizado.