OPINIÃO

Afinal, quanto realmente vale o título da Sul-americana?

Espelhada na Liga Europa, a segunda competição da América do Sul se consolida como objeto de desejo possível da maioria […]

Taça da Sul-americana com pórtico especial da final a ser disputada entre Fortaleza e LDU.

Fortaleza vai em busca de seu primeiro título oficial internacional.

Espelhada na Liga Europa, a segunda competição da América do Sul se consolida como objeto de desejo possível da maioria dos clubes do continente

A verdade é que ainda não conseguimos dimensionar a Sul-americana dentro de uma imaginária escala de grandeza dos campeonatos que formam o calendário do futebol brasileiro. Os clubes, os torcedores, as federações e a própria mídia desprezam ou potencializam a competição em uma espécie de gangorra guiada pelos seus interesses mais urgentes. Um “hoje sim, hoje não” que se alterna a cada temporada. Mas mesmo pisando em um terreno instável, é possível enxergar um caminho sólido sendo desenhado para a consolidação e consequente valorização da competição. Ainda que dentro de um perfil específico de clubes. E não há problema algum que seja dessa forma. 

A chegada do Fortaleza na final da edição 2023 – e, principalmente, com a semifinal vencida sobre o Corinthians -, tem um peso simbólico na análise desta dualidade. Em vários recortes. Com foco direcionado para a Copa do Brasil e o Brasileiro, o clube paulista utilizou reservas nas primeiras fases da disputa continental. Na época, o então treinador Vanderlei Luxemburgo explicou que a decisão de não priorizar a Sul-americana já estava no planejamento. É aí que entra a tal “gangorra de interesses urgentes” que citei na abertura do texto. Bastou que a Sul-americana se tornasse a única chance de título para o Corinthians na temporada que “tudo mudou”. Mais de 42 mil torcedores lotaram a Neo Química Arena para a primeira partida da semifinal diante do Fortaleza. O empate e a clara inferioridade do time diante do adversário selaram a demissão de Luxemburgo. Ironia do destino. 

Ou melhor, ironias. No plural. A “gangorra” também passa diretamente pelo Fortaleza. O Tricolor vive o maior momento da sua história, consolidado como maior força do futebol do Nordeste na atualidade e derrubando limites históricos para a região – como o recorde de permanência (6 anos) e a melhor classificação na Série A (4º colocado em 2021) na era dos pontos corridos. Neste recorte, o Fortaleza jogou duas Libertadores consecutivas. O detalhe é que, ano passado, sua disputa internacional acontecia de forma simultânea a uma grande campanha do rival Ceará na Sul-americana. Um prato cheio para os torcedores tricolores multiplicarem os discursos de que o torneio onde o Ceará ganhava notoriedade era a “Segunda divisão da América”. Mas…de novo a gangorra se movimentou.

A coroação do Fortaleza

Este ano o Fortaleza foi rapidamente eliminado da Libertadores e – com um elenco de alto nível técnico e alto padrão de desempenho – encontrou na Sul-americana o caminho aberto para o maior título da história do clube. O que pode vir a ser uma verdadeira coroação para este capítulo iniciado em 2018 e acelerado com a chegada do técnico Juan Pablo Vojvoda. E não há absolutamente nada que diminua ou desvalorize isso. Nem sempre o que se fala é aquilo que se sente. Não tenho dúvidas que as ironias dos torcedores do Fortaleza com a campanha do Ceará na Sul-americana não passavam de bravatas de quem estava morrendo de medo de ver o rival fazer história. E são as mesmas bravatas que torcedores de outros clubes da região já dispararam nas redes sociais diante da iminência da conquista do Tricolor. 

A cultura do futebol brasileiro

Está claro que supervalorizar ou ridicularizar a Sul-americana é apenas uma dança de egos. O repetitivo jogo de interesses urgentes. E vai além dos torcedores e dos clubes. A própria mídia entra nesta dança a partir da lógica de quem detém os direitos de transmissão – o que determina e dimensiona o tempo de cobertura, a visibilidade e até mesmo o reconhecimento da grandeza do feito.

Em uma análise mais fria e pretensiosamente imparcial, o tortuoso processo de (des)valorização da Sul-americana está enraizado na cultura do futebol brasileiro – mais até do que do continental. Até porque, fora do Brasil, esse dualismo sempre foi muito menor. E, de novo, a mídia tem papel determinante. Assim como os emaranhados políticos que sempre deram à Conmebol uma face caótica e de mínima credibilidade. A cultura do futebol brasileiro foi construída pela cobertura microregionalizada dos clubes do eixo Rio-São Paulo. Engolimos por décadas e décadas o trabalho de massificação e nacionalização dos clubes desses dois estados. Qualquer jovem dos anos oitenta ou noventa, assistiu muito mais jogos do Volta Redonda e do União São João do que do Bahia ou do Coritiba. No Brasil, por muitos anos, a final do Campeonato Carioca era tratada como um acontecimento maior que a final da Libertadores.

A longa distância para a Liga Europa

Para completar, entra em cena a instabilidade de calendário da Conmebol. Enquanto na Europa o conceito de uma segunda competição continental foi criado em 1971 e consolidado sem nenhuma interrupção (a Copa da UEFA transformou-se em Liga Europa, mudando apenas o nome, mas herdando a estrutura e história), na América do Sul, a primeira tentativa só aconteceu 21 anos depois com a Copa Conmebol. E ela teve vida curta. As baixas audiências e o consequente desinteresse das emissoras de TV foram esfacelando a competição desde muito cedo. Para piorar, a distribuição das vagas muitas não atendia diretamente o mérito esportivo. Uma equação que sempre resulta em colapso. Fim da linha em 1999.

Três anos depois, a Sul-americana foi criada para tentar mais uma vez preencher a lacuna de uma segunda competição continental. E parecia já nascer condenada ao fracasso. O Brasil, por exemplo, abriu mão de ter representantes logo na primeira edição. Mas apesar das turbulências e da inconsistência da Conmebol que segue introduzindo constantes mudanças no formato – inclusive com distribuições questionáveis de vagas -, a competição sobrevive e chega a 21 anos de disputa ininterrupta. O que já nos permite fazer em consolidação no calendário. Criou suas primeiras raízes e está cada vez mais interligada à Libertadores. Sob a ótica do futebol brasileiro, diria que a chave começa a virar apenas em 2017, quando todas as vagas passam a ser distribuídas dentro do Campeonato Brasileiro e sem qualquer elo com Copa do Brasil ou competições regionais. A sensação de mérito na conquista da vaga é o primeiro passo para a valorização.

O fim do primeiro ciclo da Sul-americana

Impossível não lembrar da edição 2016 quando aconteceu o primeiro duelo internacional do maior clássico do futebol de Pernambuco (Sport x Santa Cruz) e as partidas tiveram públicos pífios de 5 mil pessoas no jogo de ida e 6 mil na volta. Um capítulo que deveria ter sido histórico acabou sendo quase que ignorado pelas duas torcidas. Em uma visão mais regionalizada, naturalmente, diria que aquele clássico pernambucano de arquibancadas vazias representa o fim do primeiro ciclo da Sul-americana no Brasil. O ponto máximo causado pela imposição de uma narrativa de desvalorização do torneio internacional. No ano seguinte, não por acaso, mais de 62 mil torcedores do Flamengo lotaram o Maracanã na final da edição 2017. Claro que a “gangorra de interesses urgentes” entrou em cena mais uma vez, porém aquela final era uma prova clara de que havia um processo de valorização em curso. Gradual.

Ainda falta muito, claro. Em uma comparação de premiação financeira, por exemplo, o título da Sul-americana vale menos da metade do que a CBF paga ao campeão da Copa do Brasil. São R$ 41,7 milhões para a taça internacional (o que, convenhamos, é uma ótima premiação) contra R$ 91,8 milhões para a nacional. Diferença natural de mercados. De potencial de público dos principais clubes envolvidos.

A única chance real de um título internacional

Enxergo duas questões fundamentais no processo de valorização da Sula: Entender que ainda é uma competição muito recente em um esporte onde tradições são sempre superdimensionadas (os estaduais e seus inócuos tabus que o digam); e aceitar que a sua importância depende diretamente do perfil de cada clube. É absolutamente natural que clubes que regularmente disputam o título da Libertadores minimizem uma “segunda divisão continental”. Não há qualquer problema em se admitir isso. Porém é fundamental perceber que, cada vez mais, este “grupo de elite” vai sendo reduzido. Assim como é na Europa. Ou talvez até mais concentrado. As últimas quatro edições da Libertadores foram vencidas por Palmeiras e Flamengo. Entre 2020 e 2022, as três finais só envolveram clubes brasileiros. Desde 2017, apenas clubes do Brasil e da Argentina chegam na decisão. Um caminho sem volta.

Ou seja, para a maioria absoluta dos clubes grandes e médios do continente, a Sul-americana é a única chance real de uma conquista internacional. Tal como a Liga Europa para 99% dos clubes europeus. Um clube chileno, por exemplo, não disputa uma final de Libertadores há 30 anos. Outro exemplo didático: O gigante Independiente/ARG – maior campeão da Libertadores com 7 títulos – não consegue sequer chegar em uma final do torneio há 40 anos. Neste intervalo de tempo, conquistou a Sul-americana em 2010 e 2017, inclusive vencendo o Flamengo no já citado jogo que levou mais de 62 mil pessoas ao Maracanã. Um título de primeira prateleira. Fundamental para a renovação da imagem de clube vencedor que o Independiente construiu no passado e estava cada vez mais distante.

Visibilidade e controle das narrativas

As revoluções constantes na comunicação; o maior engajamento dos clubes diretamente com suas torcidas; a distribuição mais democrática dos direitos de transmissões; a era dos streamings; os canais independentes de comunicação entre torcedores… tudo isso tem um peso decisivo para algo que toda competição precisa: Visibilidade. É muito mais fácil emplacar narrativas em 2023 do que era em 2003 ou em 1999. Talvez o CSA hoje conseguisse gerar uma maior visibilidade – e consequentemente uma maior valorização – para a “esquecida” final da última e esfacelada edição da Conmebol que disputou contra o Talleres/ARG. Naquele ano a decisão foi, se muito, uma partida alternativa do calendário. Longe dos holofotes do grande público. 

Uma realidade que jamais se repetirá. Pelo contrário. Se existe uma evolução concreta na Sul-americana é em relação à sua visibilidade. O primeiro ganho neste sentido foi em 2010, quando passou a garantir uma vaga na Libertadores para o campeão. A consolidação da Recopa abrindo a temporada com o confronto entre os vencedores das duas competições continentais também é um avanço significativo e – a partir de 2023 – outro grande passo foi dado com a criação do Desafio de Clubes entre UEFA e Conmebol. Um duelo entre o campeão da Liga Europa e o campeão da Sul-americana. Este ano aconteceu a primeira edição, em julho, entre Sevilla e Independiente Del Valle. Com apenas 19 mil pessoas no estádio, o jogo teve um clima de amistoso de pré-temporada para o clube espanhol, mas – convenhamos – até pouquíssimo tempo o próprio Mundial de Clubes era visto desta forma na cultura do futebol europeu. Mas este é um tema para outro texto.

Um caminho para ser reconhecido, admirado e seguido

Por fim, depois de tantas linhas e divagações, a essência deste texto é desatar os nós que a cultura do futebol brasileiro criou em torno da Sul-americana. Perdemos muito tempo procurando razões para desvalorizar ou desacreditar da competição e muitas vezes adotamos visões que não são verdadeiramente nossas. Está mais do que claro que clubes como Flamengo, São Paulo ou Corinthians vão sempre surfar na onda dos seus próprios interesses. Dançar conforme a música que eles mesmos colocam para tocar. Pelo próprio tamanho e pela redoma criada pelas mídias que sempre os cercaram, eles detém o controle da narrativa. Escolhem a posição da gangorra. Um dia escalam reservas e, no outro, colocam 60 mil torcedores no estádio. Um dia chamam de “segunda divisão da Libertadores” e no outro glorificam o título de uma Recopa.

Isso nunca me incomodou. O que sempre causou incômodo foi ver outros clubes do país – com realidades de investimento abissalmente menores – incorporarem este mesmo discurso e minarem um caminho que os próprios teriam muito mais oportunidade de percorrer. Porém quando não se tem o controle da narrativa, fica difícil reverter uma negação que nós mesmos ajudamos a construir. Para um Flamengo, a narrativa do seu interesse se resolve com uma matéria de 5 minutos no Jornal Nacional ou 50 matérias na home do Globo Esporte.

Se vencer a LDU em Maldonado (por sinal, a mudança da sede da final para um pequeno e antigo estádio foi mais um erro grave de condução da Conmebol) e conquistar seu primeiro título internacional, o Fortaleza terá seus dois minutos no Jornal Nacional (será?). Sua incrível jornada das dramáticas eliminações na Série C ao título da Sul-americana é uma história pronta para ser contada em tom épico. Mas – de verdade – espero que um eventual título do Tricolor tenha um significado maior e que vá além do próprio clube. Que seja o início de uma nova relação da imensa maioria dos clubes do futebol brasileiro com a Sul-americana. Sem se preocupar com o que os outros vão dizer. Com bravatas. Sem perder tempo discutindo se a taça deve estar numa prateleira acima ou abaixo de qualquer outra competição. O caminho pavimentado pelo Fortaleza precisa ser reconhecido, admirado e seguido. A porta já estava aberta há tempos.

 

COMPARTILHE

Bombando em Opinião

1

Opinião

Corinthians Renova Empréstimo de Maycon: Terceira Vez?

2

Opinião

Veja três craques que ainda buscam garantir vaga na Euro 2024

3

Opinião

CBF trata novas cotas da Copa do Brasil e do Nordestão como recorde, mas só fez corrigir a inflação

4

Opinião

Flamengo se aproxima dos clubes mais ricos do mundo, aponta estudo internacional

5

Opinião

Ranking dos estaduais: maiores campeões do país por década e região